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Ditadura e Resistência, ontem e hoje

A força e a coerência do testemunho de resistência à opressão e de ousadia na ação transformadora da realidade brasileira, marcam a trajetória de Frei Tito de Alencar Lima. Resistência e ousadia, base para o perene interesse por sua biografia e justificativa para o Título de Cidadão Paulistano concedido em sua memória em 11 de agosto de 2016, por iniciativa do mandato do vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP).

A trajetória pessoal de Frei Tito já é bastante conhecida pelos brasileiros e está registrada e difundida em livros, filmes e na internet.  Desde 1982, com a publicação de Batismo de Sangue, em que frei Betto dedica um capítulo especial a contar a luta de seu confrade contra a ditadura, e do regresso de seu corpo ao Brasil, em 1983, diversas iniciativas contribuíram para tornar Tito um militante conhecido, reconhecido e assumido como inspiração pelos movimentos sociais, pastorais e sindicais, não apenas no Brasil, mas em toda América Latina.

Mais recentemente, em 2007, o lançamento de Batismo de Sangue, filme dirigido por Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo de frei Betto, ampliou consideravelmente a visibilidade e a informação sobre Tito, tema também de uma biografia lançada no primeiro semestre de 2014, Um homem torturado, de autoria das jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles.

Iniciativas como o seminário Frei Tito e a Revolução Brasileira: Reflexões a partir dos escritos de Tito sobre Resistência à Ditadura, Educação Popular e Socialismo, realizado em agosto de 2014, pelo Coletivo Frei Tito Vive, ajudaram a difundir os escritos políticos e reflexões de Tito, reunidos em publicação virtual[1].

A entrega do Título de Cidadão Paulistano marcou também os 42 anos de seu martírio e foi ocasião propícia para a reflexão sobre os desafios do Brasil ainda sob o domínio das forças econômicas que desferiram o golpe em 1964 e impedem a superação das estruturas sociais e políticas que mantém a desigualdade no país.

Um ato emblemático por mostrar que, se as marcas da ditadura ainda persistem a nos travar a vida, as resistências se renovam nas pessoas e nas formas de organização, mobilização e luta.

Um ato de reflexão a partir das lutas concretas desenvolvidas coletivamente contra a opressão e a tortura policial que vitima, sobretudo, os jovens da periferia paulistana; pela educação pública, gratuita, de qualidade e com escolas democráticas; pela democracia real, política e econômica, participativa e popular. Um ato para celebrar e animar a luta pela Revolução Brasileira.

A homenagem foi recebida por Vera Lúcia de Alencar Lima, militante de direitos humanos e sobrinha de Tito. “O título é o reconhecimento da luta do Frei Tito pela justiça e liberdade. É uma iniciativa louvável, porque continuamos vendo muitas torturas e prisões, principalmente da juventude negra e pobre. A luta dele continua. Eu recebo esta homenagem em nome dos mortos e desaparecidos pela ditadura e dos milhões de migrantes nordestinos que vivem e trabalham em São Paulo”, disse Vera de Alencar.

Representando o Movimento Mães de Maio[2], Vera Lúcia Andrade de Freitas, afirmou que a opressão que vitimou Tito continua acontecendo nas periferias. Vera teve o filho de 21 anos assassinado nos chamados “Crimes de Maio”. Entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo, segundo levantamento da Universidade de Harvard, a maioria em situações que indicam a participação de policiais. A maior parte dos casos (505 civis assassinados) fazia parte de uma ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que se concentraram nos dias 12 e 13 de maio.

Entre os mortos, 63% tinham até 25 anos de idade, 50% eram negros, 94% sem antecedentes criminais e 96% eram homens – entre as mulheres assassinadas está Ana Paula Santos, então grávida de nove meses com parto marcado para o dia seguinte. Ao lado do namorado, saiu para comprar comida quando o casal foi abordado por um grupo de encapuzados. Ana Paula tentou proteger o companheiro, imaginando que a gravidez poderia minimizar a agressão, mas acabou sendo morta com cinco tiros, alguns na barriga, que provocaram também a morte do bebê.

Entre os assassinados, 50% foram mortos com mais de três tiros – 10% dos mortos foram alvejados com mais de oito tiros. 60% dos tiros foram dados na cabeça das vítimas. 57% com tiros na parte posterior do corpo.

Os Crimes de Maio são a maior chacina do século 21 no Brasil, e talvez a maior da história do País – nos 21 anos de ditadura, entre 1964 e 1985, 434 pessoas foram mortas pelo Estado. Uma década depois do massacre de 2006, apenas um agente público foi responsabilizado pelas mortes. Condenado, ele responde a recurso em liberdade e continua atuando como policial militar[3].

O gritante número de assassinatos e o desinteresse da Justiça em punir os responsáveis motivaram a criação do movimento Mães de Maio, formado principalmente por familiares das vítimas do massacre. Mais do que justiça para os próprios filhos, as Mães construíram, ao longo dos anos de atuação e luta, um movimento social de combate aos crimes do Estado ocorridos durante o período democrático, e se transformaram em referência para outras famílias vítimas da violência policial no Brasil[4].

Erick Borges participou da homenagem representando os estudantes secundaristas em luta e reafirmou a necessidade de se fazer política nas ruas para combater o capitalismo e o sucateamento da educação. As manifestações dos secundaristas surpreenderam pela espontaneidade e pela rapidez com que se ampliaram. Foram ocupações de escolas iniciadas contra a “reorganização” escolar proposta pelo governo do Estado de São Paulo, que pretendia fechar 94 escolas, impactando mais de 311 mil estudantes que teriam que mudar de escola. A primeira ocupação foi numa Escola Estadual na cidade de Diadema, na região do ABC, na noite do dia 9 de novembro de 2015. Dela, se seguiram mais de 200 escolas ocupadas ao longo de 2016. Os protestos, com ocupações e atos de rua – apesar de fortemente reprimidos pela polícia – derrubaram o secretário estadual de educação e culminaram com o adiamento da “reorganização” anunciado por Alckmin.

Como recordou João Xerri, confrade de Tito na Ordem dos Pregadores, e que coordenou a cerimônia na Câmara dos Vereadores, é importante notar que o “crime” que levou Tito de Alencar Lima para os porões da ditadura foi exatamente a organização de um congresso de estudantes, o famoso “congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Ibiúna, em outubro de 1968. Permanências da ditadura, ainda hoje.

O vereador Toninho Vespoli ressaltou que as violações aos Direitos Humanos permanecem no cotidiano do Brasil, através da violência policial, dos golpes políticos, dos preconceitos e da tortura praticada em larga escala dentro do sistema carcerário. A tortura generalizada no Brasil tem raízes nos três séculos de escravidão que vitimaram milhões de trabalhadores, e a tortura política da ditadura exacerbou a prática da tortura contra os pobres, os jovens, os negros. “Não podemos temer tempos sombrios”, afirmou Vespoli.

Militarização da polícia, educação de baixa qualidade e política dominada pelo poder econômico: a permanência mais decisiva e estrutural da ditadura, que nos afeta hoje em diferentes dimensões da vida, é o modelo econômico implantado a partir de 1964, num contexto em que as corporações industriais dos EUA buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina, para enfrentar a crescente concorrência das corporações européias reconstruídas no pós II Guerra e barrar o avanço da influência política dos países comunistas.

A entrada das transnacionais na economia brasileira representa um novo deslocamento dos centros de decisão, do Estado para estas empresas privadas. O Estado deixa de ser o ponto de confluência das tensões políticas que condicionam a orientação do desenvolvimento e, posto que essa passa ao controle das transnacionais, o Estado torna-se mero gestor técnico e, sobretudo, um órgão repressivo. Nas palavras precisas de Celso Furtado:

“(…) as grandes empresas norte-americanas terão necessariamente que transformar-se em um superpoder em qualquer país latino-americano. Cabendo-lhes grande parte das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à localização das atividades econômicas, à orientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das economias nacionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais Estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (…) Em realidade, se se consegue subtrair ao Estado grande parte de suas funções substantivas na orientação do processo de desenvolvimento econômico e social, seria de esperar que a atual ‘fermentação’ política, que caracteriza muitos dos países latino-americanos, tenda a reduzir-se, passando os governos a atuar principalmente no plano técnico. (…) Com efeito, a penetração indiscriminada em uma estrutura econômica frágil de grandes consórcios, os quais se caracterizam por elevada inflexibilidade administrativa e grande poder financeiro, tende a provocar desequilíbrios estruturais de difícil correção tais como maiores disparidades de níveis de vida entre grupos da população e rápida acumulação de desemprego aberto e disfarçado. (…) O resultado último seria um aumento real ou potencial das tensões sociais na América Latina. Como as decisões econômicas de caráter estratégico estariam fora do alcance dos governos latino-americanos, tais tensões tenderiam a ser vistas, no plano político local, tão somente pelo seu ângulo negativo. A ação do Estado teria que ser de caráter essencialmente repressivo” (Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, p. 44 e 45).

Como resultado, aprofundam-se a inadequação tecnológica e os efeitos da existência do excesso estrutural de trabalhadores disponíveis: os salários permanecem determinados pelo custo de reprodução da população do campo – agravado pela interrupção da reforma agrária – e, portanto, há concentração de renda, que condiciona a estreiteza do mercado face aos problemas de escala de produção. Por isso, a concentração de renda é pressuposto e resultado do processo e gera agravamento das tensões sociais e a necessidade de repressão política. Daí, a confluência entre o sentido da política econômica operada pelo ministro Delfim Netto e a repressão da Operação Bandeirantes (OBAN), financiada por parte do empresariado paulista.

Ontem, como hoje, o modelo econômico da ditadura é implantado logo nos primeiros meses após o golpe, e pode ser analisado a partir das reformas contidas no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG). O sentido principal do PAEG era adequar o marco institucional ao deslocamento dos centros de decisão, às necessidades das transnacionais – coadunar estabilização política e econômica por meio do vínculo entre militares e tecnocratas. Para isso, realizou reforma fiscal instituindo sistema tributário regressivo para compensar o déficit público, com redução do consumo, notadamente dos trabalhadores; reforma trabalhista que consistiu em arrocho salarial – através de política salarial que substituía as negociações coletivas por índices de reajuste determinados pelo governo; fim da estabilidade no emprego; e, sobretudo, intervenção e repressão política aos sindicatos.

O PAEG completava-se com uma reforma monetária e financeira que, com a desculpa de aumentar a poupança, significou a abertura da economia nacional ao sistema financeiro internacional: fim da lei da usura que estabelecia teto às taxas de juros e flexibilidade para instituições financeiras e empresas captarem recursos fora do país. O resultado de tamanha flexibilização é o mesmo que verificamos com a eclosão da crise de 2007 nos EUA e Europa: estavam colocadas as bases institucionais para a escalada do endividamento externo posterior, que lançaria o Brasil na longa década de estagnação de 1980.

Os resultados do PAEG, portanto, só poderiam ser a concentração de renda, pela queda dos salários reais, e o estreitamento do vínculo do sistema econômico nacional com o sistema financeiro internacional, que viabiliza o financiamento das transnacionais e as remessas de lucros para suas matrizes no estrangeiro.

A partir destas “contrarreformas de base”, pavimentou-se o caminho para a gestão de Delfim Netto na economia durante o governo Médici, os anos do chamado “milagre econômico”, que cabe aqui, brevemente, recuperar em seu sentido mais amplo. Tratava-se de fazer avançar a industrialização fundada na mimetização dos padrões de consumo (bens duráveis), combinado a uma necessária mudança no perfil da demanda através de transferências de renda dos trabalhadores às classes médias mais elevadas, a fim de viabilizar um mercado ao novo padrão de industrialização. Para tanto, expandiu-se o gasto público e o crédito ao consumo das classes médias, via nexos com o sistema financeiro internacional, e aumentou-se a pressão pelo rebaixamento dos salários.

O “milagre” resultou em aumento da concentração de renda e crescimento desproporcional da produção de bens não-duráveis, que estimulou importações igualmente excessivas de bens de capital (máquinas e equipamentos para a indústria), que expressam o nexo das filiais brasileiras das transnacionais com as unidades produtoras de tecnologia no exterior.

A cópia dos padrões de consumo (mimetização) leva a um crescimento econômico que reproduz os mesmos desequilíbrios: supõe e reproduz a concentração de renda nas classes médias para consumirem os automóveis, as geladeiras, as televisões, e o endividamento financia o crescimento do consumo e das importações de bens de capital sem elevar a capacidade de autotransformação do sistema. Em suma, na análise precisa de Celso Furtado, a velha herança colonial se atualiza: dependência e subdesenvolvimento reforçam suas conexões fundamentais.

O ato final da gestão econômica da ditadura foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), uma resposta à crise gerada pela elevação do preço do petróleo, que procurava enfrentar os estrangulamentos causados pelo déficit comercial e avançar na indústria de bens de capital e intermediários, tentando reorientar a inserção externa da economia brasileira para a exportação de produtos industrializados. Para isso, o II PND contou com elevação do financiamento público através das estatais e mais concentração de renda para viabilizar investimentos. Gasto público para empresas privadas e repressão sempre caminhando juntos. Ontem, como hoje.

O II PND acirrou a mimetização dos padrões de consumo e a dependência tecnológica e financeira, resultando em aumento do endividamento e das importações necessárias à reprodução desse padrão de industrialização, em total consonância com as estratégias das transnacionais.

Eis o legado da gestão ditatorial: a política econômica torna-se função da reciclagem da crescente dívida externa acumulada no período; as garantias cambiais ao fluxo financeiro retiram autonomia da política cambial; política de subsídios para o setor exportador retira parte da autonomia da política fiscal; endividamento manipulado por instituições financeiras compromete o controle do Estado sobre a liquidez e retira autonomia da política monetária. De forma estrutural, a centralidade do endividamento e a perda de autonomia da política econômica tornam a economia brasileira prisioneira da política monetária dos EUA. A crise da dívida dos anos 80 foi o destino desta marcha da insensatez.

O modelo econômico da ditadura significou, em síntese, a consumação do deslocamento dos centros de decisão em favor das corporações transnacionais e do sistema financeiro internacionalizado. Isso potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de renda – na base da inadequação tecnológica e da mimetização dos padrões de consumo. Há crescimento, mas não desenvolvimento. O Estado – não mais centro de decisão – tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas transnacionais e órgão repressivo para sufocar os conflitos políticos daí decorrentes. O saldo foi o crescimento momentâneo, funcional à transnacionalização produtiva e financeira, e subordinado à política dos EUA; a crise da dívida no momento de reversão da política econômica dos EUA; e duas décadas posteriores de estagnação. Evidentemente, o modelo corroeu as bases da sociabilidade no Brasil e fez avançar a barbárie.

A hegemonia do capital sobre o Estado e o trabalho, resultado de anos de ditadura e propaganda ideológica liberal, fez enfraquecer a contestação sindical e popular ao modelo econômico brasileiro, ao passo que naturalizou o caráter repressor do Estado, fazendo-o prescindir de aparatos clandestinos como a OBAN.

Uma economia crescentemente desnacionalizada, com os centros de decisão das empresas deslocados para o exterior, num contexto de extrema concentração de riqueza nas mãos de um reduzido número de pessoas, com fortunas familiares que superam em muito o PIB da maioria dos países do planeta: eis a correlação de forças do País em que vivemos.

Particularmente, a elite brasileira, completamente desenraizada em seu próprio país, é incapaz de se reconhecer na sofrida história latino-americana e por isso projeta suas raízes nos países do centro do sistema capitalista, de onde importa costumes, valores e modas estéticas e intelectuais. O desenraizamento da elite brasileira determina seu padrão de consumo. E, com conseqüências ainda mais dramáticas, influencia o espelhamento da classe trabalhadora nos padrões globais de consumo e na forma de vida defendida pela elite brasileira. Como escreveu Simone Weil, “o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar (…). Nada mais claro e simples que uma cifra” (A condição operária e outros estudos sobre a opressão, 1943).

Diante de tamanho desafio, é alentador recorrer à força utópica de Carlos Drummond de Andrade: “Tantos pisam este chão que ele talvez / um dia se humanize (…) / Nossos donos temporais ainda não devassaram / o claro estoque de manhãs / que cada um traz no sangue, no vento” (“Contemplação no banco”, Claro Enigma, 1951).

Hoje, assim como ontem – e sempre – resistência e ousadia: legados de Tito de Alencar Lima!

Thomaz Ferreira Jensen

Thomaz Ferreira Jensen |
economista, assessor técnico do DIEESE