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A produção da vida

O homem com seu trabalho produz bens, conhecimento, ideias, cultura, monumentos. Produz o humano. Inventa, pinta e borda. Produz riqueza e miséria, alegria e sofrimento. O homem com seu trabalho constrói o mundo, produz a vida. Mas trabalhar não é apenas fazer. Trabalhar é fazer, é pensar, é representar, é sentir. O mundo e o trabalho que o constrói não surgem do nada, não se reproduzem no vazio. A vida se cria em circunstâncias determinadas, fruto de relações entre os homens. Relações sociais. Relações sociais de produção. Todos pertencemos à mesma espécie e, no entanto, a vida, entendida como um conjunto de fazeres, pensares, sentimentos e representações, tem muitas e variadas formas. Esses modos de ser diferem no tempo e no espaço porque são resultado de relações sociais e, com isso, da natureza e das formas que o fazer, o pensar, o representar e o sentir tomam em cada momento histórico. Essa diversidade não diz respeito a indivíduos, mas aos inúmeros modos de organizar a sociedade. O fazer é social, assim como o pensar, o representar e, até mesmo, o sentir.

Como tudo que é próprio do ser humano, também as formações sociais não são eternas, mas se reproduzem como modos de ser que se transformam ao longo do tempo. Não deixa de ser uma contradição reproduzir-se - produzir de novo - de forma diferente. Mas assim é. Só há mudança, e como já foi dito nada é eterno, se o velho se reproduz mediante uma certa produção do novo. Isso significa que há sempre algo diferente, algo original no processo concreto de reprodução social. E é esse o espaço do sonho, do possível. Por isso, não se sonha no vazio. Assim, a forma como se trabalha, como qualquer outro processo social, traz consigo o novo junto com o velho. Além disso, como bem o disse Marx, a reprodução dos meios de produção e a continuidade da produção material não se dão sem a reprodução de relações sociais.

Da mesma forma que a pró- pria vida não se reproduz sem a repetição de gestos e de ações cotidianas. A questão é saber como e onde se reproduzem as relações de produção que são o resultado sempre renovado do processo de produção. Henri Léfèbvre, em "A sobrevivência do capitalismo", enfatiza a importância dessa questão para a compreensão do processo do capital e argumenta que a reprodução das relações de produção não se dá apenas nas empresas, pois estão em jogo relações de dominação e contradições que extrapolam o processo de trabalho. Desse modo, a sociedade como um todo se torna o lugar da reprodução. Entretanto, a reprodução – e, portanto, ao mesmo tempo, a produção da vida nas sociedades capitalistas tem no trabalho um de seus momentos mais importantes.

Desde os primórdios do capitalismo, foi preciso que todos trabalhassem, homens, mulheres e crianças, pois a exploração capitalista e sua legitimação se dão no próprio processo de trabalho. Obrigatório e indispensável na forma que lhe dá o capital, o trabalho se tornou protagonista de sonhos e utopias, medos e pesadelos da humanidade. Inspirou artistas e serviu como castigo para criminosos. Esteve no centro de disputas religiosas e foi bandeira para mais de uma revolução.

Como resultado desse processo secular de forma-ção, ou de conformação, e embora tenha sido preciso usar dos mais diferentes meios para obrigar os homens a trabalhar, hoje é muito difícil imaginar a vida sem trabalho. Eu diria que, aos poucos, ao longo dos últimos séculos, tanto a vida como o sonho, o real e o possível, foram sendo conformados pelo trabalho. Por um certo tipo de trabalho. Diferentes representações do trabalho foram se sucedendo desde o sé- culo XVI, entre elas, o trabalho como marca da salvação divina, como meio de procura e satisfação de necessidades, como legitimação da riqueza, como bastião moral e fonte de dignidade, como instrumento de liberdade e criação. Por fim, o século XIX assistiu à construção de utopias que tinham o trabalho humanizado como centro e referência. No entanto, as esperanças concebidas por essa concepção do trabalho não se realizaram e têm, hoje, cada vez menos espaço. O trabalho como atividade positiva e criativa e uma sociedade sem trabalho alienado, sem trabalho compulsório e sem valores de troca, como previa Marx há mais de cem anos, estão fora de cogitação neste momento.

A anunciada perda de importância do trabalho para outras dimensões da vida, possível com os avanços da técnica e da ciência, acabou tomando um outro caminho. O trabalho, que nas expectativas otimistas deixaria de ser a principal atividade humana, que já não era mais considerado a única fonte de enriquecimento moral e de dignidade, teve seu status radicalmente alterado nos últimos anos. Hoje, uma parte da humanidade, sem outra possibilidade de acesso aos meios de vida, persegue e disputa o emprego que se torna escasso, um lugar no mundo do trabalho subitamente inacessível. Chega-se à situação constrangedora e contraditória de desejar e brigar por um modo de vida penoso e desnecessário, quando já existem condições concretas para sua superação.

Suzana Sochaczewski

Suzana Sochaczewski |
É Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidad