A violência das forças policiais contra manifestantes em luta por direitos sociais, seja no campo ou nas cidades tem uma origem clara: a ditadura militar brasileira, que foi o momento em que se configurou o modelo de Polícia Militar que existe até hoje com o foco na repressão e não no combate à criminalidade. O cientista político mestre pela Unicamp e doutor pela USP Guaracy Mingardi conversou com o Unificados sobre a desmilitarização da polícia no Brasil. Ele é ex-investigador da Polícia, especialista em Segurança Pública. Foi Assessor Parlamentar, Secretário de Segurança Pública de Guarulhos, Assessor do Procurador Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Subsecretário Nacional de segurança pública, pesquisador da Direito GV e Assessor da Comissão Nacional da Verdade.
Unificados | Na sua opinião o fato de termos uma das forças policiais mais violentas do mundo relaciona-se com o fato de termos polícias militares?
Guaracy Mingardi - Sim, até certo ponto. O que acontece é que as polícias militares têm menos ligação com a população. Isso faz com que a probabilidade de uso da violência aumente, mas não é uma relação automática. É bom deixar isso claro. Existe um conjunto de fatores.
Unificados | Quais seriam?
Guaracy Mingardi - Nossa sociedade é violenta mas não é esse o ponto principal. Ocorre que nós temos uma permissividade muito grande com relação a violência policial porque o Estado não controlou isso bem. Atualmente, os estados, os governos, preferem usar mais a Polícia Militar que a Civil. O número de pessoas que você contrata mostra a importância que você dá para aquilo. Nos últimos 20 anos, em todos os estados, a Polícia Civil diminuiu em importância, com redução do efetivo. Todas as polícias têm deficiência de quadros, mas no caso das civis é muito mais grave. Já o efetivo da PM é mantido a ferro e fogo, porque a PM é quem cuida das manifestações. Os governos preferem a PM porque primeiro, fazem o que mandam e depois de fazer o que mandam, trabalham dentro naquilo que interessa. Aos governos não interessa combater a criminalidade. Quem derruba o governo é agitação. E para isso, é preciso muita força para manter o controle sobre a população.
Unificados | Nos atos de rua, devido à violenta repressão policial, tornou-se comum o grito: “eu quero o fim da polícia militar”. Você é a favor?
Guaracy Mingardi - Sou favorável a desmilitarização e isso não tem nada a ver com fim da polícia. A maioria dos estados democráticos não tem Polícia Militar, tem apenas Polícia Civil nas ruas. Na Inglaterra, não tem Polícia Militar nas ruas, nos Estados Unidos existem três polícias civis: municipal, estadual e federal. A Polícia Militar de São Paulo mata mais que a polícia americana e temos índices decriminalidade elevados, homicídios alarmantes, o tráfico fazendo o que quer. Como a Polícia Militar é a que mais está nas ruas, quando se fala em “fim da Polícia Militar”, as pessoas acham que é acabar com a polícia e não é isso. Uma polícia de base civil faz patrulhamento. Na França, por exemplo, existe a Polícia Nacional, que é civil, e a Gendarmaria Nacional, que é militar. Essas duas polícias não se chocam porque cada uma tem sua área. A polícia civil atua na cidades com mais de 10 mil habitantes, enquanto que a Gendarmaria Nacional atua em áreas rurais, normalmente com populações abaixo dos 10 mil habitantes, fora da jurisdição da Polícia Nacional Francesa.
Unificados | Por que aqui no Brasil a PM predomina?
Guaracy Mingardi - Polícia ser Militar significa que aqueles que mandam conseguem fazer o que querem, fogem da ilegalidade com mais facilidade do que com a polícia de cunho civil. Isso não significa que não haja corrupção na Polícia Civil. O que acontece, porém, é que nossa estrutura policial militar foi balizada em 68 69, quando colocou as Polícias Militares sob o comando do Exercício e ganhou o formato que tem agora. É isso precisa mudar. As PMs que menos foram afetadas por esse modo de operar do Exército, foram as de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. São polícias que matam muito menos, e que são mais próximas da população. A Polícia Militar de São Paulo, a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – tropa do comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo), foi criada para evitar a guerrilha, roubo a banco. É um filhote da ditadura que tem que acabar.
Unificados | O que significa na prática desmilitarizar a polícia?
Guaracy Mingardi - É preciso mexer, acabar com a Justiça Militar. Por que policial tem que ter justiça especial? O Regime Disciplinar tem que mudar, porque permite que policiais sofram perseguição, com prisão administrativa. Imagine você que seu chefe não vai com a sua cara, ele pode decretar sua prisão e isso ainda existe em muitos estados. É preciso acabar com a dependência do Exército. Há um órgão do Exército Brasileiro chamado IGPM - Inspetoria Geral das Polícias Militares que dá pitacos e isso tem que acabar também. Mudando essas coisas, veremos mudanças dentro da Polícia. Pode até manter o nome Militar, pode chamar do que quiser.