Clemente Ganz Lúcio[1]
Clóvis Scherer[2]
A questão parece fácil de responder, se o déficit da Previdência for tomado simplesmente como uma diferença entre receitas e despesas. Mas não é esse o caso. A resposta vai muito além de uma mera apuração contábil e depende inteiramente da interpretação do que a Constituição Federal define como o orçamento da Seguridade e da Previdência Social e sua relação com a garantia dos direitos sociais aos cidadãos. Ao se considerar esses elementos, é possível entender a real situação das contas da Previdência e sua evolução ao longo dos últimos anos, que é tema central deste artigo.
A Previdência Social, segundo a Constituição Federal de 1988, faz parte da Seguridade Social, que é um conjunto de ações integradas de proteção social, que envolvem também a saúde e a assistência social.
Para custear a Seguridade, os constituintes criaram um orçamento específico, com fontes de recursos variadas. Esse orçamento é composto pelas contribuições previdenciárias de trabalhadores e de empregadores, bem como por tributos gerais – COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido) e o PIS-PASEP (Programa de Integração Social) –, receita com loterias e outros itens de menor expressão. Com isto, os parlamentares à época desejavam evitar os problemas de financiamento das políticas sociais, existentes na época da ditadura militar, quando elas eram subordinadas aos objetivos da política macroeconômica e os recursos se limitavam à folha de pagamentos, como base praticamente única de arrecadação tributária.
Um detalhe importante do sistema de custeio da Seguridade é que ele não está segregado entre as políticas públicas que a compõem, devendo todas elas ser executadas de forma integrada. Em outras palavras, embora essa integração tenha sido incompleta, o orçamento previsto na Constituição é único para a Previdência, a Assistência e a Saúde. Este orçamento é bastante expressivo, tendo alcançado R$ 837 bilhões em despesas no ano de 2017[3]. Desse total, quase R$ 560 bilhões foram gastos em benefícios previdenciários, R$ 116 bilhões nas ações de saúde, R$ 81 bilhões em benefícios assistenciais (incluindo o Programa Bolsa Família) e R$ 54 bilhões no abono salarial e no seguro-desemprego. Do lado das receitas, o orçamento da Seguridade recebeu, em 2017, R$ 753 bilhões. Praticamente a metade desse valor veio de contribuições previdenciárias, cerca de R$ 374 bilhões. O restante provém, principalmente, da COFINS, com R$ 236 bilhões; da CSLL, com R$ 76 bilhões; e do PIS-PASEP, com outros R$ 62 bilhões. Assim, pode-se ver a importância das fontes de receitas oriundas de tributos sobre o faturamento e o lucro das empresas para sustentar as políticas sociais. E isto é importante em um país em que o mercado de trabalho é estruturalmente heterogêneo, gerando poucos empregos formais, e que, especialmente neste momento, está sendo impactado pela desregulamentação trabalhista e pelo avanço e difusão de novas tecnologias que são poupadoras de mão-de-obra.
Mas, a potencialidade arrecadatória do sistema de custeio da Seguridade é ainda maior, principalmente se for considerado que atualmente se estima que há cerca de R$ 141 bilhões em renúncias fiscais com base nesses tributos. Vale mencionar que, deste total, R$ 57 bilhões referem-se a receitas previdenciárias. Além disso, é expressivo o volume de recursos que poderia entrar nos cofres da Seguridade, através de uma melhor cobrança das obrigações tributárias e de uma fiscalização mais atuante sobre a fraude trabalhista, caracterizada pelo emprego sem carteira.
Portanto, desconsiderando esses vazamentos de receitas das políticas sociais e da Previdência, em 2017, a Seguridade apresentou um déficit de R$ 57 bilhões. Mas, isto significa que há um desarranjo estrutural no financiamento das políticas sociais previstas na Constituição? O resultado do orçamento da Seguridade, na última década, foi predominantemente superavitário. Entre 2005 e 2014, a sobra de recursos foi da ordem de R$ 66 bilhões, ao ano, em média. Somente depois de 2014, quando a economia se desacelerou e caiu em grave recessão, o desemprego explodiu e as empresas perderam receitas e lucros, é que houve a inversão de sinal nas contas da Seguridade. Ou seja, os déficits do biênio 2016-2017 foram conjunturais e não o resultado de um problema estrutural no sistema de custeio em vigor.
Para entender este raciocínio, é preciso explicar a diferença existente entre a interpretação constitucional do chamado déficit da Previdência e a, outra, de natureza fiscalista, feita por aqueles que avaliam que há um déficit estrutural. A primeira diferença é que, na visão fiscalista, a apuração dos resultados da Seguridade social não leva em conta R$ 160 bilhões que são desvinculados pela chamada DRU (Desvinculação das Receitas da União), ou seja, podem ser destinados a outros fins pelo governo. A segunda diferença é que, também na visão fiscalista, se incluem nesse orçamento as receitas e despesas da previdência dos servidores da União, inclusive a inatividade dos militares. Como essa conta é negativa em R$ 76 bilhões, a soma com a perda de receita da DRU faz o déficit da Seguridade pular para R$ 291 bilhões, em 2017. É um erro a inclusão do RPPS dos servidores no orçamento da Seguridade porque ele faz parte da despesa da administração pública, não é acessível a todo o brasileiro e tem regras que vão além da proteção social, sendo um instrumento também de gestão de pessoal na administração pública. Por isso mesmo é que esse regime tem regras específicas e diferenciadas, ainda que se busque maior similitude com o regime geral dos trabalhadores do setor privado. Por fim, se o regime dos servidores da União faz parte da Seguridade, o mesmo deveria ser feito com as centenas de regimes de previdência de estados e municípios.
Além disso, vale lembrar que, na década passada, uma sequência de emendas constitucionais e leis específicas mudaram os parâmetros de concessão de aposentadorias e pensões dos servidores públicos. No caso da União, a implantação da previdência complementar, em 2013, teve como consequência a limitação do valor dos benefícios, fazendo com que se projete equilíbrio entre receitas e despesas no longo prazo.
Se há um déficit, no momento, ele se deve aos compromissos passados, e não aos fluxos presentes e no futuro. No caso de muitos estados e municípios, a previdência complementar ainda não foi implementada, em grande medida por implicar em custos, de curto prazo, de difícil enfrentamento, num quadro de estrangulamento financeiro pela própria perda de receitas causada pela crise econômica.
Na realidade, o bom desempenho das contas da Seguridade depende de um ambiente econômico que combine crescimento com geração de emprego de qualidade. A década passada ilustra essa questão chave, pois nela houve, não apenas expansão do produto interno, como a taxa de desemprego caiu a níveis relativamente baixos e, sobretudo, o emprego formal, com proteção previdenciária e trabalhista, foi o carro chefe. Isso não prescindiu, claro, de políticas de inclusão previdenciária, abrangendo as empregadas domésticas, os trabalhadores por conta própria e as donas de casa para os quais se criaram modalidades de registro e filiação previdenciária específicos.
A partir de 2015, o ambiente econômico e político do país se degradou intensamente. A política econômica deu um "cavalo de pau" em direção ao modelo de austeridade fiscal, a política monetária ortodoxa mirou a queda da inflação, sem dar atenção ao custo social e econômico, e a luta política tomou conta de todos os poderes e gerou uma crise que paralisou empresas e setores produtivos centrais para a economia.
Essa combinação de fatores tornou a recessão que se desenhava muito mais profunda e longa do que o esperado. Em menos de um ano, a taxa de desemprego mais que dobrou e 13 milhões de pessoas ficaram sem emprego. Não se pode pensar que as receitas da Seguridade, principalmente as contribuições previdenciárias, fossem passar por isso incólume. A demora em haver retomada do crescimento e o pobre desempenho do emprego formal, desde então, só prolongam esse quadro.
Se as contas da Seguridade estão mostrando déficits, eles são conjunturais e resultam da queda real nas receitas, numa conjuntura de crise e estagnação econômica. Entretanto, argumenta-se que, no futuro, o envelhecimento da população fará o número de idosos beneficiários crescer muito mais do que o número de trabalhadores ativos, contribuintes. Assim, haveria um desequilíbrio estrutural.
A mudança demográfica é um fato inegável, mas não é único nem, tampouco, de curto prazo. A garantia da proteção previdenciária, no futuro, vai depender do ritmo de crescimento do emprego, da proporção com que homens e mulheres irão participar das atividades econômicas, da sua produtividade no trabalho, dos salários e outros rendimentos que formarão a base de contribuição, da taxa de formalização dos vínculos de emprego, da inclusão de trabalhadores autônomos no sistema como contribuintes, da estrutura de tributação e da eficiência da arrecadação, entre outros. Ou seja, há um amplo leque de questões, além da/os desafios impostos pela transição demográfica, que precisariam ser trazidos ao debate sobre a reforma da previdência, que não deveria ser decidida com um senso de urgência que não existe.
Enfim, é natural, de tempos em tempos, que haja revisão de parâmetros previdenciários em função das mudanças sociais e econômicas. Para que essa revisão seja aceita por todos os participantes, é preciso avaliar com detalhe os impactos fiscais, mas também os impactos sociais. Afinal, previdência é um pacto social, um pacto entre trabalhadores, empregadores e estado, que atravessa gerações, que exige confiança e entendimento.
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[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE.
[2] Economista do DIEESE.
[3] Os números citados neste artigo foram extraídos da Análise da Seguridade Social 2017, publicada pela ANFIP, salvo quando houver outra indicação.