À conta de preâmbulo, para deixar registrado o meu inconformismo com a expulsão dos médicos cubanos do Brasil; sim, expulsão! Não há outra palavra para classificar a iniciativa extemporânea do futuro governo, já que sequer se empossou para tomar tão grave decisão sobre um setor que mais demanda a atenção estatal e que agora desguarnece-se dramaticamente.
À conta de preâmbulo, como dizia, faço uma pergunta: mais do que razões ideológicas, mais que a boçalidade anticomunista, mais que o esforço para, na visão do futuro chanceler, agradar o salvador do ocidente cristão, Donald Trump, mais que tudo isso, o que pesou mesmo para a expulsão dos médicos cubanos não teria sido a cor da pele deles?
Quase todos pretos!
E onde se viu, que ousadia é essa de preto exibir anel de doutor, ainda mais doutor médico, ainda mais preto comunista? Além, do que, a quem esses pretos estrangeiros atendiam aqui na Pátria Amada? A outros pretos! Ora, que desperdício!
Na verdade, a expulsão dos médicos cubanos é uma paráfrase da grande meta do bolsonarismo que é a expulsão do Brasil de todos os estrangeiros indesejáveis. E, no caso, entenda-se por estrangeiro todo brasileiro que se oponha ao novo governo, às ideias do novo governo, tanto no plano dos costumes quanto às propostas na área econômica, educacional e de política externa.
A ressurreição de consignas como “Ame-o ou deixe-o”, “Pra Frente Brasil”, “Ninguém Segura Esse País”, sob a trilha de Don e Ravel.
A mesma trilha usada nas sessões de tortura, talvez queira criar um clima, incentivar manifestações, dar continuidade às mobilizações eleitorais via redes sociais em favor da “purificação” do país, libertando-o dos “comunistas”, prendendo-os ou expulsando-os.
Um dos filhos do presidente eleito fez até mesmo um cálculo: talvez seja preciso prender e expulsar, como se estrangeiros fossem, uns cem mil desses brasileiros indesejáveis, para “limpar o Brasil”.
Na fala desse rapaz o que mais me assustou foi uma referência que ele fez à Indonésia, como exemplo de país que criminaliza as “atividades comunistas”. Mas sabe ele à custa de quê? À custa da chacina, do massacre de mais de um milhão de indonésios considerados comunistas.
É de arrepiar! Mas essa é a ideia: se você for a favor, bem-vindo ao Brasil de encantos mil, salve a seleção! Se você for oposição, você é um estrangeiro indesejável, passível de punição.
Pois é, nós que defendemos o Brasil contra a pilhagem de suas riquezas, especialmente a pilhagem do petróleo; nós que somos contra a privatização da Petrobrás, da Eletrobrás; que somos contra a entrega da base de Alcântara para os Estados Unidos; que somos contra a absorção da Embraer pela Boeing; que nos opomos à doação do nióbio e outros metais preciosos; que discordamos radicalmente da venda de terras para os estrangeiros; que somos contra a privatização da água, das florestas, do ar e do mar territorial; nós que combatemos a desindustrialização do país; que lutamos pela ciência e pela tecnologia nacional; nós somos os indesejáveis, os “estrangeiros”.
E quem são os brasileiros?
Paulo Guedes, Castello Branco, Roberto Campos Neto, Sérgio Moro, Onyx Lorenzoni? Ou os indicados de Olavo de Carvalho, o colombiano Ricardo Velez Rodriguez e Ernesto Araújo? Ou seriam Pedro Guimarães e Rubem Novaes? Esses são os brasileiros?
Encerra-se no dia 31 de janeiro o meu mandato de senador. Se fizesse uma retrospectiva do que foram esses oito anos, não encontraria nada do que me arrependesse. Cumpri com honra, dedicação e brasilidade o mandato que os paranaenses me deram.
E, caso alguém se desse ao trabalho de compulsar os discursos que fiz nesta Casa veria neles, de um lado, a insistência sobre o mesmo tema: a soberania nacional, a construção do Estado Nacional Brasileiro e, como pressuposto disso, o combate permanente, radical à financeirização da economia, à globalização sob o domínio do capital financeiro, ao reino dos bancos, ao império de Mamon.
De outro, haveria de constatar a também insistente, radical defesa dos trabalhadores, de seus direitos, de suas conquistas civilizatórias; ao lado da defesa do capital produtivo nacional, em oposição aos sibaritas do mercado financeiro, de onde, aliás, procede toda a equipe econômica do próximo governo.
(Um parêntese: temos à vista uma frente inusitada: um bando de especuladores e de agiotas, ultraliberais entreguistas e traidores da pátria, ombro a ombro com as Forças Armadas. Eu até poderia entender a adesão da teologia da prosperidade de Edir Macedo, de RR Soares, de Malafaia, de Valdomiro Santiago, do impagável Agenor Duque e outros ao neoliberalismo.
Afinal, essas igrejas não seriam nada sem o jogo do mercado das ilusões capitalistas, sem os negócios dos milagres e da lavagem de dinheiro. Mas as Forças Armadas…aí não entendo mesmo. Fecho o parêntese)
O tempo todo, dizia; enquanto esta Casa fartava-se de assuntos absolutamente secundários, de demandas corporativas, da cassação de direitos de trabalhadores, da redução de direitos sociais, da entrega do petróleo, da renúncia à soberania ou de arremedos de reforma política; ocupei-me daquilo que para mim deveria ser a essência de nossos mandatos: um Projeto para o Brasil, os fundamentos básicos para a construção do Brasil-Nação. A contraposição entre Brasil, um país para os seus e Brasil, um mercado para os outros explorarem.
Nesses oito anos, foi a minha obsessão. Na verdade, uma obsessão de toda a vida.
Inúmeras vezes, da tribuna do Senado, na Comissão de Economia, em seminários e debates aonde quer que fosse, aqui ou lá fora, foi o meu canto de uma nota só: um projeto de desenvolvimento nacionalista, democrático e popular.
Não se tratava de uma pregação sectária, fundamentalista.
Tratava-se, isso sim, de ter os olhos e a mente abertos para a realidade das coisas. Tratava-se de não se deixar cegar pela religiosidade, pelo dogmatismo, pelo preconceito ideológico dos liberais.
Esta é a verdade: não existe nada mais ultramontano, primitivo, tosco que o neoliberalismo, ainda mais a sua leitura brasileira, que consegue reunir em só embornal banqueiros, o altão escalão das Forças Armadas, os setores atrasados do agronegócio, representados pela ressurreta UDR, os cruzados da luta contra a corrupção, os evangélicos da teologia da prosperidade, os barões da mídia e os “moralistas” tipo Alexandre Frota e pastor Feliciano.
Já pensaram, reunidos sob o mesmo teto Paulo Guedes, Edir Macedo, Olavo de Carvalho, Sérgio Moro, Joice Hasselmann, Kim Kataguiri, a Família Buscapé, os Setúbal, os Moreira Salles, os Trabuco?
Vão viver sob o mesmo teto, até que a casa caia...
O que teremos, pelo que tudo indica, é um governo para o mercado, ao invés de um governo apesar do mercado. E um governo para o mercado significa, necessariamente, um governo antinacional, antidemocrático, antipovo e, por isso mesmo, um governo corrupto, já que a alma, a essência do neoliberalismo é venal, degenerada, ímproba. Não sabia disso, Moro?
Afinal, não há ética, não há moralidade, não há cristianismo, não há espiritismo, não há judaísmo, não há islamismo, não há budismo – tomando a essência, a medula, a substancia dos ensinamentos dessas religiões – em um regime que não coloque o homem, em sua integralidade, no centro de suas ações.
Basta ver o que Paulo Guedes – cuja ignorância sobre as instituições públicas é alarmante e embaraçosa – andou dizendo sobre a necessidade de sepultar de vez as heranças da socialdemocracia brasileira.
Deus meu! Quando houve um regime socialdemocrata no Brasil, tomando como paradigma a socialdemocracia europeia ou o keynesianismo praticado por Roosevelt, nos Estados Unidos, nos anos 30, 40 e seus sucessores? Nunca!
O que tivemos, sob Getúlio, Juscelino, Goulart, Sarney, Itamar e, principalmente, sob os governos do PT, o que tivemos, foram algumas concessões, algumas velas acesas ao povo enquanto queimavam-se tochas em adoração a Mamon.
Socialdemocracia no Brasil quando? Até as migalhas distribuídas incomodam essa gente tenebrosa, desumana. É aterradora a inconformidade dessa gente com a abolição da escravatura.
Daí que, ainda mais uma vez, manifesto a minha estupefação por ver as Forças Armadas metidas nessa cumbuca. É um envolvimento perigoso.
E não me venham com essa conversa mole de que são alguns militares da reserva que farão parte do chamado “núcleo duro” do próximo governo, e não a instituição. Balela! É a instituição, toda ela, contaminada pela política. A política invadiu os quartéis. Ou o general Vilas Boas vai dizer, como Sérgio Moro, que os militares no Governo são “técnicos”?
Já que não há como o próximo governo dar certo, pois não há como o ultraliberalismo triunfar sobre a sociedade brasileira, a não ser reprimindo-a, massacrando-a, calando-a, as Forças Armadas sairão outra vez chamuscadas dessa aventura.
E não adianta desviar a atenção e perseguir fantasmas de 83 anos atrás. Não vai dar certo.
Se, nesse que, talvez, possa ser meu último pronunciamento nesta Casa, reservei tanto espaço, entre idas e vindas, às Forças Armadas, é que meus sentimentos patrióticos, nacionalistas, desenvolvimentistas sempre fizeram polifonia, justaposição com a tradição de patriotismo, nacionalismo e desenvolvimentismo de nossos militares.
Em nome dessa tradição, e como ex-aluno do antigo CPOR, faço mais uma pergunta aos militares: o que eles acham das declarações dos ministros que Bolsonaro indicou para as Relações Exteriores, Agricultura e Economia, sobre a América Latina, Cuba, África e China, espelhando, por exemplo, essas declarações na política externa de Ernesto Geisel?
Os escalões superiores das Forças Armadas tão envolvidos com o próximo governo, e tão apressados em também amaldiçoar a chamada “herança petista”, talvez mostram-se ignorantes, indoutos sobre as raízes de nossa política exterior no período militar. Foi sob Geisel que o Brasil reatou com Cuba e China. Foi sob Geisel que o Brasil começou sua aproximação e cooperação com a África.
Foi sob Geisel que reconhecemos Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, ex-colônias portuguesas. Foi Geisel quem deu uma banana para os Estados Unidos e firmou o acordo nuclear com a Alemanha.
Foi ainda sob o regime dos generais que o Brasil se aproximou dos países árabes e passou a ter uma política independente nos conflitos do Oriente Médio.
E jamais ocorreria a Geisel ou qualquer dos outros presidentes militares bater continência a um tipo como John Bolton.
Embaixada do Brasil em Jerusalém? Nem pensar!
Como se vê, sequer no fogo ardente da guerra fria o Brasil submeteu-se ao alinhamento automático com os Estados Unidos.
Os senhores militares esqueceram-se disso tudo? Não se lembram mais que para realizar os nossos objetivos nacionais permanentes é essencial que sejamos um país soberano, dono de seu próprio nariz e que não se envolva nessa ideologização estúpida atrasada, provinciana que Guedes, Araújo e Velez Rodriguez querem nos meter?
Aprendam com Geisel, se não querem dar o braço a torcer para os críticos do novo governo.
Ora, terceiro-mundismo é a vovozinha de quem disse.
E por falar em objetivos nacionais permanentes gostaria de lembra-los, aos que já se esqueceram, que eles são: Democracia, Paz Social, Desenvolvimento, Soberania, Integração Nacional e Integridade do Patrimônio Nacional.
Pergunto eu: o que esses arrivistas tipo Paulo Guedes, Joaquim Levy, Roberto Campos Neto, Rubem Novaes, Pedro Guimarães, Carlos von Doellinger, Ernesto Araújo, o colombiano Velez Rodriguez têm a ver com objetivos nacionais permanentes, senhores das Forças Armadas?
Pretendo refletir, espelhar as posições de toda uma vida nos tormentosos dias que se aproximam. Mas que não me vejam pessimista ou cético. Ninguém tem o direito de ser pessimista no Brasil. Não com um povo como o nosso que, há mais de 500 anos, suporta as consequências que ter uma elite predadora, inculta, trapaceira, corrupta e venal, mas segue em frente.
Daqui a algumas semanas encerra-se o meu mandato de senador. Não me recolho à vida privada. Não tenho também esse direito. Enquanto respirar, viverei pelo Brasil, fiel, intransigentemente fiel à utopia que me embala desde a meninice. O sonho de um país soberano, desenvolvido, e bom para todos.
Brasileiros, contem comigo, sempre!